domingo, 16 de dezembro de 2018

Expurgo

       Foram três palavras lidas e uma descarga elétrica despejada no topo da sua cabeça. Não sabia nem como e nem o porquê de ter parado ali, novamente com o risco, agora comprovado, de sofrer com a imagem de sua mentira. As três palavras não machucavam tanto quanto a dor da perda da propriedade delas. Não eram mais suas. Não eram mais.

      A luz em volta de si foi se apagando enquanto passava a mão direita no estômago dolorido, ardente. Suas unhas cavucavam e a ardência parecia aumentar. Sangue, carne e o dedos a perfurar a pele. Coçava de vazio, coçava de ausência. Recostou no travesseiro sua cabeça pesada e ainda eletrizada pelas três palavras desprovidas de seu corpo. Ou seu corpo desprovido delas.

     Sua mão já apalpava algo quente, úmido e palpitante no centro de sua barriga. Segurava-o fortemente, acariciava-o e retirava-o de dentro de si. A incisão que fizera foi o caminho para a salvação.

      Foi até o banheiro e com uma toalha limpou o sangue, lavou a barriga. Pegou gaze na gaveta, passou algodão com iodo e fechou com esparadrapo. O curativo superficial não era uma preocupação. Seu ventre se recompunha rápido. As células de carne e de pele se multiplicavam a cada passada de algodão. Seu corpo se acalmava e as três palavras não coçavam mais no centro de seu ventre. 

        Retomava posse, oferecendo-se para si.

       Trocou os lençóis da cama, arrastou os móveis e o ar chegava agora em seus cantos escondidos. Fez um café e sentou-se de frente para a vista do céu. Aquela dor não era mais sua. A dor, desapossada, destituída, desabrigada, fora jogada pela janela e sua redenção vinha de dentro daquela mulher.

     Voltava a ser senhora de si. Voltava a ser um corpo completo, uma mulher com outras tantas acomodadas em seu peito. Todas pela reconstrução do caminho labiríntico que levava até o seu coração.

2 comentários:

Marcia Pavelosk disse...

Não há nada mais lindo e profundo do que se libertar da dor, do peso que tira o brilho da nossa alma!
Esse é o sentido da vida!
Não ter medo de enfrentar a própria realidade nos faz mais fortes e livres!
E assim, de dor em dor e com muita coragem e desejo de ser feliz, vamos curando nossa alma.
Nunca desista da sua liberdade.

alcides disse...

Dramático mas com toques de fantástico e dos fatasmas que assumem a sua escrita Marina. Chamar de visceral não é chiste neste caso. É isso.