José Alencar foi vice-presidente do Brasil ao longo dos últimos 8 anos. Assumiu o posto em diversos momentos durante as constantes viagens de nosso RP supremo, o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva. Mas nada disso realmente importa. José Alencar é um homem que merece uma homenagem maior do que somente pela obrigatoriedade em se falar de uma pessoa pública, um representante da história política do país. Este nosso José merece ser mais lembrado por não ter se deixado transformar em um homem-zumbi.
Explico.
Ao me preparar para entrevistar um cliente hoje, achei adequado levar uma base menos comercial e mais filosófica do negócio e escolhi o Foucault (na verdade um texto sobre um conceito foucaultiano, de Peter Pál Pelbart) por conta da proposta oferecida por meio dos produtos da empresa. O texto discorre sobre biopolítica - espaços nos quais se desenvolvem relações, lutas e produções de poder - e biopoder - aquele que investe suas tecnologias de controle sobre as redes de produção, afim de gestioná-las, absorvê-las e neutralizá-las.
Segundo o texto, 'Os mecanismos diversos pelos quais se exercem esses poderes são anônimos, esparramados, flexíveis. O próprio poder se tornou pósmoderno.' E mais para frente, 'o poder já não se exerce desde fora, desde cima, mas sim como que por dentro, ele pilota nossa vitalidade social de cabo a rabo. Já não estamos às voltas com um poder transcendente, ou mesmo com um poder apenas repressivo, trata-se de um poder imanente, trata-se de um poder produtivo.'
O poder sobre a vida, o biopoder, passa a não mais decidir barrar a vida, mas intensificá-la, otimizá-la. O poder se confunde com o corpo, com o que conhecemos de nós mesmo. O corpo dita as ordens que nos encarregamos de administrar. Nosso desejo já está capturado. Assim, há um esforço desmedido por prolongar o máximo que se pode a vida e acaba-se não a vivendo, não saboreamos, aproveitamos o que ela tem de melhor a nos oferecer. Tomamos café sem cafeína, cerveja sem álcool, sexo sem sexo, tudo em favor da preservação do corpo. E nos preservamos como uma potência de vida não realizada.
Ao longo da Segunda Guerra Mundial, nos campos de concentração os homens já à beira da morte, aqueles que já não tinham forças, que se arrastavam, que tinham desistido de viver eram chamados de muçulmanos sendo todos judeus, visto que esses demostram um desapego em relação à vida. Mas, se pensarmos, diz o autor do texto com minha concordância, os muçulmanos, no sentido de viver extremamente a vida (ou intensamente) a ponto de não temerem o fim dela são mais vivos do que nós, que prolongamos ao máximo a vida, mas já estamos todos mortos na verdade, por esvaziarmos seu sentido. E como diz Agamben, citado neste mesmo texto, o biopoder contemporâneo reduz a vida à sobrevida, esta biológica, produz sobreviventes.
Ao pensar em nosso José, encontramos não essa necessidade de sobrevivência, esse esvaziamento, mas o encontro de uma vida, como chamaria Deleuze, no sentido que libera uma centelha de vida, é uma suspensão, a potência encontrada nos casos extremos de início ou ao cabo dela. A vida que põe em xeque todas as 'divisões legadas pela tradição’.
José Alencar liberou uma centelha de vida ao longo de todo esse percurso doloroso para o espetáculo criado por sua doença, e nos afastamos para assistir e preservar nosso prolongamento em contraste com o fim que desejamos o mais distante possível de nós.
Esse texto me fez pensar muito nessa coisa de estarmos a morrer por não concretizarmos a potencialidade de viver. Ao prolongarmos a vida, no sentido que nos recusamos a viver para não nos machucarmos, recusamos a experiência da vida. Uma delas é a morte. A última delas. Thimothy Leary fez da sua um grande espetáculo. Ao descobrir que estava doente, no lugar de lamentar, ele deu uma festa por enfim poder viver a maior de todas as viagens. No caso do José, sua postura em relaçao à possibilidade da morte foi de agradecimento, de ter feito o que se propôs (a ele mesmo) e de tranquilidade, por mais doloroso que a morte possa vir a ser para quem a vive e para quem assiste de perto. Para mim, o comportamento diante dela, de seu fim, garante uma análise mais humana do que toda uma vida em microscópio, quando é nesse momento que nos sentimos finitos, impotentes, do nosso tamanho, e temos a chance de escolher sermos felizes ou tristes, não importa muito, com o que fizemos, mas sem o apego que causa pena e desconforto não só nos próximos e distantes, mas a si mesmo, mais do que qualquer coisa. O conforto de se despedir, a segurança desse let it be é, para mim, motivo de admiração.
A um homem que não temeu viver o momento da completudo de sua existência, um salve, a nós, que estamos a morrer lentamente todos os dias em escolhas mais benéficas para nosso corpo, um poema de Manuel Bandeira.
A Morte Absoluta
Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.
Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão – felizes! – num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.
Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.
Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."
Morrer mais completamente ainda,
– Sem deixar sequer esse nome.