quarta-feira, 22 de julho de 2020

Zeitgeist Post-it



Eu pedi um café e tirei da bolsa o caderno que levava para todo lado junto comigo - é olhando pela janela do ônibus ao cruzar da zona oeste para a sul que as coisas mais genéricas, mas que parecem tão sintéticas de tantas reflexões, aparecem. Era principalmente nas corridas para o trabalho, no ônibus quase vazio das cinco da manhã, que elas vinham. Mas sempre temia que o caderno não estivesse à mão e eu perdesse algo e a memória ótima porém seletiva não me deixasse lembrar mais tarde. Enfim, se bem o conhecia, iria atrasar. Assim, podia ou continuar a ler os contos do século passado ou me atentar a um zeitgeist menos jazzístico espontâneo, um que me causava arrepios na nuca já há alguns anos e que se espalhava em aforismo nas folhas do tal caderno.

É curioso como algumas reflexões nos assaltam por longos períodos de tempo. A sensação é de que estejam ali à espreita desde os primórdios de uma vida intelectualmente ativa. É um olhar cujo ponto de partida se perdeu, mas que oferece lembranças bastante longínquas, quase infantis, definitivamente ingênuas, até as frases soltas anotadas depois da conversa de whatsapp do dia anterior. 

Muito se fala em bolha, mas esse não é um conceito perceptível somente ou nascente nos meios virtuais.  Tribos, identificação, pertenciamento. No entanto, ao que me parece, é a internet, ou melhor, as redes sociais, que funcionam como catalisadoras de uma demanda por ecoar determinados ethos, garantindo uma suposta adesão, mesmo que superficial, a uma identidade ideal. Claro que isso não ocorre apenas para as telas. Mas, talvez, no lugar de tentarmos recriar nosso eu em imagens e textos na internet, estejamos trabalhando pela coerência delas com o nosso eu offline. 

Veja aquele rapaz sentado ali na mesa perto da janela, por exemplo. Meu pai costumava dizer, logo que entrei na USP, que era possível reconhecer meus colegas de universidade de longe. Grande frequentador do supermercado Padrão, reduto de estudantes duros, papai chegava de suas compras diárias sempre com uma descrição afiada e jocosa. "Barba, sandalinha de jesus, igual a sua, uma camiseta quase sem cor e o cabelo desgrenhado". E riam. Todos riam. Eu não, fingia bem que não entendia, porque entender seria concordar com o fato de também utilizar os acessórios que me garantiam a identificação a uma filiação universitária. E para garantir o pertencimento é preciso acaso. É preciso que imaginemos que nossas escolhas ecoem como se fossem feitas espontaneamente. Aguele rapaz jura que sua camisa xadrez e barba, calça preta mais coladinha e o tênis que todo mundo usa são escolhas que não seguem uma tendência. Porque para identificação não é possível que a escolha seja estética, ela precisa ser imbuída do que o mundo do marketing gosta de chamar de conceito e tudo deve ser uma grande coincidência de encontro destes.

A coincidência se coaduna a busca por o que hoje chamam de consumo consciente, mas que já teve outros nomes. Naomi Klein falava de consumir um estilo de vida. Eu chamo de comprar um ethos. O mais curioso desses consumidores todos, cada um de seu modo particular mas nem tanto, é o fato de que existe uma insistência importante para a construção de seu ideal de eu no aspecto outsider de seus sujeitos. Como diria um grande professor meu, não existe fora. Mesmo porque, o que há de tão diferente se o consumo ainda é parte não só integrante quanto estrutural dessa equação que visa mais a apaziguar as culpas pelo pertencimento a um sistema tão abjeto e revoltante?

Olha ele vindo. Sabia que haveria atraso, mas a surpresa é que ele é muito menor do que já foi ao longo dessa década de encontros marcados. Ele ainda me faz sorrir... Grande parte dessas anotações nos vários cadernos que carrego, no bloco de notas do celular, na arquivo Ideias no Drive, como grande parte das reflexões que vêm me assaltando ao longo da vida, começando não sei bem quando, têm a influência dessa troca que fazemos desde o primeiro dia que nos vimos. A gente costumava sentar na cozinha da casa que construímos juntos e passar horas conversando sobre o que estávamos estudando, lendo parágrafos um para o outro, anotando frases.

M. Iaiiimmm?! Pensei que ia demorar mais!
P. Ando trablhando com pontualidade.
M. ahaha Muito bem!
P. Me fala! como a gente vai atacar o tal zeitgest?
M: O zeitgeist que eu vou começar a chamar de post-it. Zeitgeist Caixa Oragnizadora. Zeitgeist Tenho que Botar Nome em Tudo.
P: Ahhshs , explica essa maluquice!
M: Hahahaha Qual?
P: O Zeitgeist de cada cosia. Mas eu acho que tem que ser um Zeitgeist geral
M: É um só. eu só dou vários nomes.
P: Que é o da cagação de regra - que eu acabo de fazer, inclusive.
M: Eu acho que cabe no mesmo.
M: É o zeitgeist post-it!
P: Hahha O Zeitgeist identificador.
M: Exato!
P: Caixa organizadora é maravilhoso!
M: E por identificar e botar em caixas, é também caga regra!
P: Total!
M: Mas nomear é apenas um dos passos. O outro é aproximar como experiência vivida, fazendo o que ativismo faz. Não é um outro. É criar meios de identificação com a tag de ALERTA. Agora, o que eu fico pensando é o que poderia estar por trás de tanta categoria.
(um gole de café)
M: E eu penso umas coisas.
P: Em que coisas?
M: Pra respoder a uma planificação das identidades antes multifacetadas, a criação de centenas de etiquetas daria a falsa (ou superficial) impressão de uma complexidade identitária.
P: Hummm... E acho o uso da palavra "etiqueta" sensacional nesse contexto. Porque me remete a uma relação quase mercadológica. No sentido de "escolha a sua identidade" dentre essas opções.
M: Sim!!! E o lance da caixa organizadora também. Porque é tudo coisa. Pegue a sua. Escolha a cor e vista.
P: Sim, sim!
M: Mesmo porque são coisas acessórias mesmo para criar essa falsa complexidade identitária. Tem a ver com consumo. Sartre se mataria porque não tem nada de olhar para dentro, mas olhar para a construção de um ideal de eu para fora.
P: Vc está pronta pra entrar num mestrado sobre identidades. pra destruir por dentro. hehehe
M: Meu tema de maior bode...hahahahah Mas olha, nessa a gente não é mais produto. A gente é cabide, porque ainda tem a ver com o que uma marca suporta em termos de "valores".
P: Caralho, vc tá uma frasista de responsa.
M: hahahahaha eu tô entediada e de saco cheio da minha bolha. minha bolha podia estourar, sabe
P: Vou te dar umas agulhas
M: metafóricas?
P: no campo hoje. teve um momento em que eu estava caminhando e trocando ideia com um cara mais velho que eu, usuário de crack, poeta...
M: hmm
P: Ele tirando várias conclusões do pequenas empresas, grandes negócios que ele viu no domingo Hahaha Mas sabe? Alguém fora da minha bolha imediata
M: sim
P: Se envolver com coisas diferentes. e tipo, não é em sarau de classe média-elite
M: ah nao, pq é mais do mesmo
P: Tem gente mais liberta dessa maluquice de etiqueta no sarau, mas tem muita gente bitolada tbm
M: bastante mais. sabe, eu não consigo mais me comunicar com nossa bolha
P: te falar que fora tbm é bem difícil.  Mas parece mais arejado
M: nao me instiga, nao me dá tesão. é um disco riscado. o campo semantico é o mesmo, sabe
P: Eu sei. Vc que me chamou atenção. De papo de mesa de bar. De já saber oq a próxima pessoa vai dizer. A gente entrou numas de extrema segurança
M: tem q todo mundo postar a mesma porra de video q a chimamanda fala sobre o brasil, para vc ser inserido no grupo com as etiquetas tais e tais e tais
P: De qq surpresa ser potencialmente disruptiva. E aí fomos tirando a potência da vida e que tbm envolve decepções, tombos
M: devir é o mesmo de ontem com um bottom diferentão e engraçadinho
P: Mano, mano, mano! vc tem que escrever sobre essas coisas, pequena. Sério.
M: Mas eu não sei nem por onde começar. Faço em que formato? conto? artigo? crônica?
P: Com essas frases? Do jeito que vc quiser! Mas eu penso em poesia e crônica. Algo meio Nietzsche, uns aforismos.
M: Vou tenta. porque isso não sai da minha cabeça há anos.
P: Pois é. Colocar pra fora de alguma forma. Se exorcizar de algum jeito.

De alguma maneira, então, esse é o começo de um exorcismo de todos esse caos e desconforto que tem crescido, se desenvolvido e até se reproduzido nos últimos anos. Vez ou outra defenstro esse caos com uma frase ou outra em tweets ou provocações que talvez só eu mesma entenda, numa piada tão interna que é de plateia única. Hoje, relendo as palavras, penso em como elas reverberarão em mim daqui a algum tempo, se eu continuarei a alimentar esse diálogo interno como ainda o faço. Já me parece incompleto o que aqui está, mas preciso de um primeiro passo e aqui vai ele.

(continua)