quarta-feira, 5 de maio de 2010

Barra Funda Segundo Felipe Tonet

Beto sempre foi um garoto franzino. Magro, pequeno, com olhos e cabelos escuros, feito jabuticaba. Ao completar 8 anos, ouviu de seus pais que mudaria para um bairro do outro lado da cidade.

Para Beto foi uma tragédia. Deixar a escola, os amigos da rua, as brincadeiras pela vizinhança, para ir morar em um condomínio num lugar de nome engraçado. Barra funda, pai. Isso lá é nome de lugar para se viver? Disse o garoto.

Seus apelos foram em vão. Seu Maurício, pai de Beto, havia conseguido um novo emprego na Zona Oeste, com o novo salário poderia dar mais conforto para a família e também para si mesmo, diminuindo o trajeto percorrido até o trabalho.

O que parecia um grande drama para Beto, em pouco tempo tornou-se uma alegria. Os novos amigos, tanto do prédio, quanto da escola, viam no garoto uma espécie exemplo.

Por ter morado em casa, e desde pequeno se acostumado a brincar na rua, Beto era o único garoto do condomínio com autorização da mãe para ir sozinho até a padaria, o mercadinho e outros lugares das redondezas.

Trazia dadinho, pirulitos, balas e chicletes e revendia aos amigos, obviamente com um pouco de lucro. Simpático e solícito, o menino também conquistou a confiança das mães dos outros garotos.

Com o tempo virou uma espécie de líder mirim. Era ele que decidia as pendengas entre os colegas, encerrava as discussões e dava o eu veredicto sobre o vencedor das brigas.

Foi Beto também que trouxe para o condomínio a notícia que ouviu na padaria do seu Manoel. Na vizinhança morava uma bruxa, afirmou o garoto uma platéia de 15 colegas perplexos e de os olhos arregalados.

Mora na casa 21, continuou Beto, as pessoas da padaria a chamam de Bruxa dos gatos, pois existem muitos gatos em sua casa, alguns deles PRETOS, disse pausadamente.

E foi Beto que começou a revolução, afinal, como líder, decretou que uma bruxa na sua rua era inadmissível. Imagine que poderes ela poderia ter, pobres cachorrinhos de rua, deveriam virar sopa, imaginou.

Os garotos escreveram diversas cartas com palavrões, todos os que sabiam, e Beto colocou por baixo do portão da casa 21. Depois, com o máximo de força que conseguiam, jogavam bexigas com água das janelas de seus apartamentos para acertar o quintal da casa da Bruxa.


Em sua ação mais ousada, Beto saiu do condomínio com um giz de cera para escrever bruxa na calçada da casa 21. Quando terminou a letra B, olhou para o portão e viu uma simpática senhora, com um cheiro esquisito e um gato no colo.

Em choque, Beto não teve reação. Cada segundo parecia uma eternidade, eles se entreolhavam. A idosa quebrou o gelo e disse. Aqui no meu quintal caem muitos pipas, nunca ninguém vem buscar. Se você quiser, pode passar toda segunda que eu entrego eles para você.

Gaguejando o garoto agradeceu e disse que na próxima segunda voltaria. E voltou. Muitas outras vezes também. Ganhou pipas, doces e uma estranha amiga.

No prédio ninguém nunca mais incomodou a simpática senhora. Beto, agora alçado ao cargo de divindade, ou garoto amigo da bruxa, proibiu os colegas de falarem mal da senhora do 21.

Ótima ideia pai, dizia Beto, eu adoro a Barra Funda.

São Paulo

Todas as portas abrem-se para um mundo completo que se fecha nas paredes, se enfia em frestas e se amontoa em esconderijos. Cada janela recorta a claridade de poucos momentos, as sacadas apresentam cenas da vida que jorra na cidade que dizem nunca dormir. Há histórias, porém, adormecidas em cada um desses quadrados, em cada um dos pedaços de uma babilônia extensa e perdida nas colinas esfaltadas.

Durante a noite, os minutos que antecedem o adormecer trazem uma imensidão de pensamentos despertados por preocupações do dia, da vida, paixões, intrigas, sonhos. A mente pode nos levar a lugares nunca antes imaginados. Pode nos levar a inquirir sobre quem mora ao nosso lado, quem foge de nos encarar pela manhã e responder ao nosso bom dia, pode nos fazer refletir sobre um possível amor perdido (ou encontrado), sobre o passado que insiste em ser presente, sobre o futuro que desejamos e que é necessário para fazer com que a noite seja mais tranquilamente dormida. Os medos e as paixões que nos movem de manhã, conteem-se nesse momento para que o corpo possa relaxar, se conseguir.

Assim como as pessoas, os bairros da cidade parecem compartilhar essas características, parecem se antecipar em criar uma história, em modelar um mundo para abrigar milhares de outras dentro de seus limites, e misturar seu destino com o de seus habitantes. Cada pedaço de São Paulo, melancólico, alegre ou coorporativo, pode levar muitos casais a se encontrarem, tentativas de suicídio frustrarem, amores serem perdidos. Cada história conta São Paulo e São Paulo narra muitas vidas.

A série de contos postados nos últimos dias tenta alcançar o entrelaçamento de pessoas e suas moradas. Por enquanto, são pequenas introduções do que pode vir a ser uma longa história. Aproveitem e comentem!

Perdizes

Ela é bem resolvida, meio maluca mas bem resolvida. Acho que queria malucar por aí, mas se segura. Não se abala facilmente, controla-se, sabe lidar com rejeição, com sua auto-suficiência, com sua personalidade forte.

Ela é linda - bonita, interessante, simpática. Ela me acrescenta. Ela sabe o que dizer, mesmo que eu não esteja mais afim. Mesmo achando que eu possa ainda estar afim. Mesmo lembrando de seus peitos e sua bunda. Mesmo lembrando do sorriso dela. Mesmo dizendo. Ela ri. Ela sabe lidar comigo.

Eu...eu não sei bem o que quero. Talvez eu queira um pouco de tudo. Talvez por ela eu não abra mão de um pouco de tudo. Talvez ela também não abrisse mão de um pouco de tudo na vida tão cheia por um menino da balada. É isso que eu sou. Um cara da balada que ela beijou numa noite bêbada na São Paulo cinza.

Talvez eu prefira facilitar minha vida, simplificar. Talvez ela não queira se envolver. Talvez não precise. Talvez eu possa rir com ela e talvez ela possa não se importar muito com isso - comigo.

Eu não preciso pensar em nada disso. Mas ela me fez pensar. Fez com que eu pensasse na forma como lidamos um com o outro. Ela acha que eu sou amigo dela. Eu queria fazer outras coisas com ela. Eu acho que posso. Eu acho que talvez ela também queira fazer outras coisas comigo. Talvez não se importe.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Brooklin

Eu vi meu sobrinho na calçada oposta e brequei. Meu pé afundava-se no acelerador e eu ia estourar o muro se não tivesse encontrado os olhos de Pedro do outro lado da rua. Eu ia dar um fim na loucura dolorida que apertava meu peito há 20 anos. Iria deixar entre o muro e o poste toda a obsessão, a doença chamada Carlos.

'Entra aqui' gritei a ele. Gritei implorando ajuda. Meus olhos devem ter assustado o garoto. Olhos vermelhos, inchados de tristeza, de incerteza, de amargura. Gritei pela minha vida, que já não era minha, que já escorria pelas minhas mãos, já doía a culpa da minha recente intenção.

Minha morte seria talvez uma forma de limpar tanta mágoa, humilhação. Apagaria de dentro de mim, que não existiria mais. Eu não seria mais nada do que um corpo preso entre a lataria daquele carro velho, acabado, enferrujado.

Dei a volta no quarteirão e a avenida para o minha casa. Voltava correndo no dia azul, aberto para o abraço da minha irmã, para o meu quarto sozinho, vazio. O verde que beirava meu caminho me levava para aquele dia no bar do centro, aquele dia que encontrei na boca daquele homem as palavras que esperei escutar e o olhar que esperei para me atirar.

Eu tinha acabado de fazer aniversário - 35 anos. Uma jovem, não tanto, mulher solteira. Uma mulher que já havia sido abandonada no altar, que já havia ouvido promessas para toda a vida e que agora bebia numa mesa de um bar, sozinha, comemorando a decepção de uma vida insatisfeita.

Tinha visto-o encostado no bar pedindo bebidas. Vagarosamente aproximava-se da minha mesa. 'Posso sentar com você?' 'Claro, por favor'. Retirei correndo minha pequena bolsa vermelha de cima da mesa derrubando meu copo de uísque. Desastre. 'Desculpa' 'Imagina, deixa eu te ajudar'. Enquanto nossas mãos secavam todo o meu desconserto eu suava e respirava forte, no ritmo da minha ansiedade.

Recusei suas mãos mas aceitei o presente de seus beijos. Um doce para equilibrar a acidez da idade 'avançada'. Fiquei sentada no chevette velho com perfume de rosas olhando para o vazio do estacionamento. Algumas imagens pareciam-me mais brilhantes, mais nítidas e, se me permitem a pieguice, mais coloridas.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Barra Funda

Pouco se ouvia e se via naquela casa azulada, aquelas paredes rabiscadas pelo tempo, desinfetadas pela chuva, lavadas pelo vento. Os tijolos aparentavam uma centena de anos descuidados, desprotegidos, usados.

Sabia-se que lá morava uma senhora com algo perto de setenta anos, pedia comida como se morassem dezenas de pessoas junto com ela. Seus olhos se escodiam no vão da porta para receber o saco de pão, os doces, bolos, chocolates, biscoitos, sucos e sempre uma outra coisinha, 'a vontade do dia', como diziam.

Era sempre agradável, sabia sobre os familiares dos entregadores, dava boas gorjetas, sorria e se trancava novamente entre as paredes que se seguravam nos muros vizinhos para não cair.

Seu dia não começava se antes não tomasse banho, pingasse gotículas de alfazema na ponta das orelhas, jogasse água para seus 7 gatos e sentasse na poltrana vermelha com uma grande caneca de café. O dia não começava direito se não ligasse para ouvir a voz da menina que agora era mulher. Sua vida não começava se ela não sentasse em frente à janela, olhasse para o céu entre as árvores e pensasse o quanto da vida largava para os vãos das portas e das cortinas semicerradas.

Alguns meninos do bairro achavam q ela era uma bruxa. Outros achavam que era louca. Muitos pensavam que ela vivia muito bem e que a deixassem em paz. Muitos outros, em bandos, esticavam os olhos para ver a mulher que era sempre o assunto do balcão da padaria. Uma que nunca viram. Tudo pelo mistério de ver quem não quer ser visto.

Ela vivia a esperar que a menina viesse visitá-la e comesse tanto dos bolos e doces e tomasse café e contasse da vida e reclamasse do trabalho, comentasse a roupa da moça na tv, pedisse para pregar um botão no seu casaco novo e lhe desse um beijo de boa noite-até.