segunda-feira, 30 de março de 2009

?Angústia?

Será que sobraram porquês a serem respondidos? Será que resta alguma dúvida, alguma lacuna, alguma observação não pensada anteriormente? Será que restam questões a serem expostas, às quais não teremos resposta? Será que deixaram alguma coisa passar, algum branco, algo não pensado?

Quanto mais textos mais dúvidas e, ao mesmo tempo e angustiantemente, a sensação de que todas elas já estão respondidas em algum lugar. Não vai sobrar nada para mim? Não vou responder nenhuma pergunta? Não vou pensar e apresentar algo novo? Não vou escrever nunca algo que não foi escrito previamente?

Não quero uma teoria do romance enquanto ainda tenho a idade de Lukács. Não quero nenhuma mimésis. Queria algo para ser o primeiro. Algo que fosse só meu, que eu tivesse elaborado sozinha, que não precisasse atrelar ao pensamento posto. Queria liberdade, desde que tivesse para onde voar.

Será que restam linhas e páginas e cadernos e capítulos? Será que ainda possa perguntar algo que não seja, no fundo, óbvio demais?

Sempre haverá resposta em algum lugar. Sempre haverá quem já terá pensado sobre tal ponto anteriormente, alguém que já terá escrito aquilo que quero escrever. Escrever sobre o que? Pensar sobre o que? Repetir modelos? Construir o já construído? Pensar numa bobagem qualquer que possa provar empiricamente o que foi pensado e estudado e elaborado e publicado?

Há algo que não tenha sido publicado? Algo que eu possa publicar?

sexta-feira, 20 de março de 2009

O Homem Redundância

Foi numa noite não muito quente de quinta-feira quando eu o avistei pela segunda vez. Assim como na primeira, fiquei com uma certa dúvida ridícula de confundir aquele senhor com ConCa. (Isso acontece frequentemente com meu pai. Para quem assiste à Cultura e conhece meu pai e Rolando Boldrin (googla lá) entende o que eu quero dizer. Fiquei achando que pudesse cometer o mesmo erro de tantos...chegar pertinho, falar o quanto eu admiro tudo o que ele faz e pimba...não era Conca.

Continuei andando, segurando forte o braço de Paulo. Boba, encantada, babando (quase literalmente). Aliás, o que parece tietagem besta quando na verdade o que eu gosto mais é do que ele escreve, como, o que diz, e que sabe como dizer. (if you know what i mean) Foi rápido, nossos olhos até se cruzaram (lógico, se uma louca estivesse olhando fixamente para você, pelo menos de canto de olho olharia para ela também - nem que não fosse por loucura).

Só depois que acabou é que eu pude compreender que aquela agitação toda era só a emoção de ver que todas as palavras saem dali. Que o discurso analítico-social-psicológico é de um senhor pequenino, cabelos grisalhos, com o andar tipicamente italiano (se você tem essa descendência e homens mais velhos na família compreende o que eu quero dizer), óculos pendurados no pescoço. Muito mais do que isso, e que já tinha visto por outros meios, ConCa é um autor vivo que escreve sobre este tempo com clareza e coerência que poucos 'artistas' são capazes de fazer.

Obrigada pelos textos, por organizar meus pensamentos, por garantir a mim, a cada texto, entrevista ou palestra, que a arrogância é mesmo um nojo, que a coerência é uma possibilidade real e que, entre tantas outras coisas, a simplicidade da forma não significa empobrecimento do discurso nem simplicidade de conteúdo. O abraço e o beijo que eu não dei dou agora, mesmo que virtualmente.

CONTARDO CALLIGARIS - Ilustrada, Folha de São Paulo, 19 de Março de 2009.

Coisa de homens


Os atiradores parecem agir na tentativa desesperada de se levarem a sério



DUAS notícias na Folha de quinta passada. Em Wendlingen, Alemanha, Tim Kretschmer, 17, saiu de casa com uma Beretta 9 mm e 200 cartuchos. O pai do jovem colecionava armas, todas legais e bem guardadas, salvo a fatídica pistola, que estava na gaveta de um cria- do mudo.

Kretschmer matou 15 pessoas, no colégio do qual ele tinha sido aluno, ao longo da estrada e numa revenda de carros, onde ele, enfim, suicidou-se. Em sua grandíssima maioria, os alvos eram femininos. Kretschmer não tinha um rancor especial pela escola onde se formara e, campeão de tênis de mesa, não era marginalizado socialmente.

Em Kinston, Alabama, EUA, Michael McLendon, 28, matou dez pessoas, começando pela mãe. McLendon (com dois fuzis, uma pistola e uma espingarda) eliminou uma lista de parentes que, aparentemente, ele detestava. As autoridades declararam: "Ele não tinha sido demitido, não houve rompimento amoroso. Ele não tinha ficha criminal nem história de distúrbios mentais". Os assassinatos em massa já são uma tradição nos EUA (desde o massacre de Columbine, em 1999) e na Alemanha (desde o massacre de Erfurt, em 2002). Mas a epidemia começou na Escócia, em 1996, com a morte de 16 crianças e um professor (mais o assassino, suicida).

E houve duas manifestações na Finlândia (nove mortos em 2007 e 11 em 2008). Isso sem contar o Iêmen, em 1997, com a morte de seis crianças e dois adultos. Claro, a mídia facilita a identificação por contaminação: de país em país, o comportamento extremo de alguém se torna "exemplar" para outros. Mas isso não nos diz a razão da série, apenas explica sua possibilidade.

A cada vez, a gente se pergunta o que pode levar alguém a sair matando. Uma patologia? Um evento inadmissível? A sensação de uma exclusão irremediável? A história de cada atirador é diferente. Alguns eram de classe média, outros de classes menos favorecidas. Alguns pareciam ter um brilhante futuro, outros acabavam convencidos de que o mundo não era lugar para eles. Entre esses, havia os que execravam sua exclusão e os que a curtiam como se fosse um privilégio. Alguns sofriam de depressões ou transtornos mais graves, mas não todos.

Será, então, que a série de horrores corresponde a um traço cultural? E lá vamos nós, reinventando banalidades sobre o "horror" moderno. Seja como for, diante dos massacres, é difícil não procurar denominadores comuns. Por exemplo, esses gestos homicidas e suicidas são propositalmente públicos. Não se trata de alvejar os passantes a partir de uma janela escondida: a matança é teatral.

Como se, para os atiradores, encarnar o anjo da morte (dos outros e deles mesmos) fosse uma demonstração, uma prova, que deve valer aos olhos de todos. Uma prova de quê? Pois é, os atiradores são sempre homens. O que eles querem provar? A identidade da gente é um tecido de imagens incertas; nesse jogo de espelhos, há poucos atos "reais", que possam dizer a que viemos sem que seu sentido dependa do olhar dos outros.

Como dizia um psicanalista famoso, é possível que haja só dois atos dessa qualidade: dar à luz e morrer. Claro, para os "meninos" só sobraria morrer. Mas acrescento: morrer e, talvez, matar. Atrás da singularidade de suas razões, os atiradores parecem agir numa tentativa desesperada de se levarem a sério e de serem, enfim, levados a sério. Algo assim: "O mundo me desprezará, mas, diante de meu ato, não poderá negar que sou um "macho de respeito'".

Faz décadas que a masculinidade está doente: sofre de uma incerteza aguda sobre o que a demonstraria de maneira irrefutável. As máscaras masculinas herdadas do século 19 (do provedor de paletó ao garimpeiro) não bastam mais. Qual é a nova fronteira que é preciso desbravar para "ser" homem?

Na aurora da modernidade, Hegel escrevia que o desprendimento em encarar a morte era a marca do mestre. Depois de dois séculos higienistas, que fizeram a apologia da sobrevivência a qualquer custo, nestas décadas em que arriscar a vida num esporte extremo é apenas um entretenimento televisivo, talvez, aos olhos de alguns, a verdadeira marca do mestre pareça ser o desprendimento em matar.

Num dos romances de Jean-Patrick Manchette (não lembro mais qual), um jovem circula de carro pelo bulevar periférico de Paris. Ele carrega uma pistola e, enquanto dirige, sussurra: "Eu vou lhes mostrar que sou gente grande".

segunda-feira, 9 de março de 2009

Vocabulary

O mundo cu-rporativo possui um léxico bastante específico, principalmente as cu-rporações digitais e seu envolvimento no competitivo seguimento de marketing. Este breve artigo tem por objetivo apontar as particularidades do discurso desse contexto e exibir as implicações nas relações sociais - de poder, e culturais.

A análise discursiva crítica de Michel Foucault apresenta o discurso como não somente o produto do contexto no qual é realizado mas como o 'produtor' de ideologias, significados e identidades. Sua teoria vai além, expondo o discurso como uma forma de controlar o que é produzido numa luta de poder sobre a enunciação através da realização em enunciados.

Bakhtin expõe que o enunciado é polifônico, ou seja, construído por diversas vozes, o que nos faz chegar à intertextualidade - todo discurso (enunciado, ou statement em inglês - enuncié em francês) é uma repetição de enunciados previamente realizados.

Para melhor expor as visões teóricas do que podemos chamar de Critical Discurse Analysis, movimento iniciado na França em resposta à análise descritiva feita até então, tomemos nosso objeto para apreciação prática do que foi exposto acima.

'A grande trend deste quarter é a mídia focada no mundo mobile. Possuímos um market share de 30%, o que nos dá um forecast de follow-up para otimizar o mercado através da união de adnertworkings. É uma tática que vem dando certo por agregar conteúdos de grandes veículos de comunicação. A equação é simples: os anunciantes vão atrás das trends. Com parceiros de peso e a vontade de se fazer presente numa mídia que se torna cada dia mais importante, o espaço publicitário mobile se valoriza.'

Pela teoria analítica de Foucault, o discurso é produto - repetido - mas também produtor de ideologias, identidades e significados. Produz e é produto da ideologia da globalização prevalecente,da comunicação global.O que está em questão fundamentalmente aqui é a lógica da política econômica global que está mobilizando os novos meios de comunicação e informação para criar um espaço extraterritorial de empresas, desafiando as realidades culturais e políticas do mundo real no qual vive a maioria nós.

A utilização de termos em inglês, predominantemente, por exemplo, é fruto da preocupação da globalização da informação. Mas, mesmo a estrutura do discuso proferido pelos publicitários marqueteiros em questão também segue um padrão, respondendo à exigência de se usar somente uma linguagem para a comuniação destinada a qualquer mercado. Com a 'multinacionalização' de empresas cada vez mais crescente, esse fenômeno linguístico espalha-se com o objetivo de unificar a mensagem e a estrutura dessa.

Esquecendo-se das particularidades de cada língua, de cada uso da língua, esse processo tende a ser empobrecedor, restringindo a possibilidade de expressão e engessando o uso nesse contexto. A polifonia acaba por não acrescentar nenhum novo valor ou significado a cada repetição do enunciado, esvaziando-o. O esvaziamento ocorre também no seguimento da identidade. Ou melhor, a identidade é somente 'decalcada', mas seus significados completamente perdidos.

O artigo não tinha intenção de ser sério, nem acadêmico. Sua estrutura seria uma forma de usar um discurso para criticar outro, o acadêmico contra o corporativo. The goal, infelizmente was not achieved. Somente escrevendo sobre um objeto podemos realize o quanto somos próximos daquilo que criticamos, de uma certa forma.

O discurso corporativo é somente um genre no meio de tantos outros que se perdem no vazio da repetição de ideias de terceiros, nas quais o autor da análise se perde e não responde ao proposto pelo trabalho. O summary, normalmente, acaba por ser somente um desejo não concretizado pelo paper.

Eu perdi o feeling para a crítica corporativa - graças às forças divinas - mas ainda tenho para a acadêmica. E digo mais, é o objeto que mais me interesso em criticar (adoro, in fact). No final das contas, o meu objetivo acabou virando mote para o que aqui se concretizou. Os letrólogos devem entender o que quis dizer. E, desculpe, mas se tiver que explicar acaba todo o encanto do desencantado texto.

Elogio da Somba - Borges

A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão)
pode ser o tempo de nossa felicidade.
O animal morreu ou quase morreu.
Restam o homem e sua alma.
Vivo entre formas luminosas e vagas
que não são ainda a escuridão.
Buenos Aires,
que antes se espalhava em subúrbios
em direção à planície incessante,
voltou a ser La Recoleta, o Retiro,
as imprecisas ruas do Once
e as precárias casas velhas
que ainda chamamos o Sul.
Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas;
Demócrito de Abdera arrancou os próprios olhos para pensar;
o tempo foi meu Demócrito.
Esta penumbra é lenta e não dói;
flui por um manso declive
e se parece à eternidade.
Meus amigos não têm rosto,
as mulheres são aquilo que foram há tantos anos,
as esquinas podem ser outras,
não há letras nas páginas dos livros.
Tudo isso deveria atemorizar-me,
mas é um deleite, um retorno.
Das gerações dos textos que há na terra
só terei lido uns poucos,
os que continuo lendo na memória,
lendo e transformando.
Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte
convergem os caminhos que me trouxeram
a meu secreto centro.
Esses caminhos foram ecos e passos,
mulheres, homens, agonias, ressurreições,
dias e noites,
entressonhos e sonhos,
cada ínfimo instante do ontem
e dos ontens do mundo,
a firme espada do dinamarquês e a lua do persa,
os atos dos mortos,
o compartilhado amor, as palavras,
Emerson e a neve e tantas coisas.
Agora posso esquecê-las. Chego a meu centro,
a minha álgebra e minha chave,
a meu espelho.
Breve saberei quem sou.