quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

O Caçador de Libélulas

Estou há 40 anos aqui e a cidade virou minha casa. Mas há sempre aquela sensação de não pertencer. O negócio é que não pertenço nem mais a Santiago nem a esta cidade em que vivo já mais do que vivi na outra. É como estar para sempre à margem, sempre sem porto, à deriva. Engraçado que a procura pela sensação de casa, de reconhecimento nunca se perde, nunca se desfaz. Há 40 anos, portanto, procuro meu lugar, e agora, aos 70, imagino que esse lugar seja dentro de cada um de meus desenhos.
Esse em suas mãos se chama Recuerdos de Mi Infancia e apesar de não ser essa a memória representada plasticamente na folha, ela me remete às tardes de verão quando meus amigos e eu passávamos sentados em frente a uma farmácia. Nós comprávamos melancias e fazíamos a maior sujeira em seus degraus e deixávamos seu Nestor uma fera por atrapalharmos sua sagrada sesta.
Um dia, o velho farmacêutico nos fez uma proposta. Precisaria de uma centena de cabeças de libélulas para a fabricação de um remédio. O engenhoso Sebastián usou um dos nossos brinquedos, aquele que gira e faz barulho...isso, reco-reco, para atrair as libélulas e muito rapidamente juntamos a encomenda para voltar à farmácia. Havia um prêmio, saquinhos de sal de frutas para misturar no refrigerante e fingir ser espumante.
Muito bem, agora seu Nestor precisava das cabeças por tamanho. A gente se sentia importante ajudando na fabricação de tão necessário medicamento. Três baldes, um com cabeças pequenas, um com médias e um cheio de cabeças grandes. Por esse pedido, além do sal de frutas nós também ganharíamos um centavo por matéria-prima.
Lá fomos nós, um grupo de meia dúzia de meninos sedentos pelo prestígio de participar de um projeto para salvar vidas e comemorar na praça com bebidas borbulhantes. Não demoramos muito e lá estávamos em frente à pequena farmácia com os baldes cheios de nossas vítimas sacrificadas por um bem maior.
Era tempo, imagino eu. Havia um engajamento para criar algo e não apenas açoitar a criançada debaixo de reclamações. Não consigo imaginar essa paciência para com os jovens hoje porque me parece haver uma pressa de se livrar do que chamam de problema, uma repulsa pela convivência com novas gerações. Claro que não sou nem ingênuo nem saudosista a ponto de dizer que havia essa celebração geracional. Havia conflito. E também imagino que isso continue acontecendo por aí. Sempre há Nestores pelo mundo. Se há um reconhecimento neste corpo velho é esse, de me aconchegar na ideia de ser como ele, alguém criativo para lidar com as pessoas, aberto para descobrir novos caminhos e feliz em oferecer a sensação de importância àqueles que cruzarem o meu caminho, que pararem em frente ao meu estabelecimento, minha banca de desenhos.
Meu nome é Wasard e foi um prazer conhecê-los. Esse desenho é um presente para vocês em agradecimento a essa conversa que me fez viajar longe, me fez voltar ao lugar onde uma vez chamei de lar.

Montevidéu, Julho/2016