quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

a outra cena

Com os olhos fixos no chão, a cabeça se agitava para que saísse daquele lugar, de perto daquelas pessoas, do olhar enojado dele sobre a sombra dela, já que fingiu não vê-la. Ela, no entanto, não conseguia fazer com que suas pernas se movessem e pudesse sumir dali. Da excitação de ver o objeto de seu desejo se aproximar enquanto atravessava a rua para sentir o mundo engolindo sua cabeça e expondo suas entranhas no meio da calçada, pulsando a dor e a vergonha quentes no rosto. 'Mas ela achou que eu fosse querer?'

Caminhava pelo corredor da escola num desenho que faria Bentham chorar de emoção. O casaco ficava muito grande nela, mas a sensação de vesti-lo e sentir seu perfume era quase como abraçá-lo, como se seus braços dessem a volta nas costas e segurassem, mesmo que frouxamente, suas mãos. Acho que nunca vou esquecer aquele perfume. 'Você não é nojenta, nem parece gorda.'

Deitada, ainda olho para o teto, contando cada um dos quadrados desenhados ao redor do lustre. A janela à sua frente mostra um pedaço do prédio do hospital e o céu aparece cinza, molhado, como se pudesse chover por semanas a fio. Já na rua, meus passos incertos porém atentos impulsionam-me para  a menina paralisada na calçada. Enquanto a olho, ainda distante, busco palavras que pudessem ser dela dentro de mim e largo um sorriso de reconhecimento sem dentes mas com brilho nos olhos.

É tarde, mas o sol ainda não esquentou a sala por inteiro e o gelado atípico do começo de dezembro é cortado pelos goles de café que regularmente levo aos lábios enquanto viro as páginas do livro. Uma canseira parece tomar conta do corpo e uma preguiça espicha as pernas e os pés que roçam os gatos no caminho. Viro a cabeça para a porta da sacada, iluminada de verde da luz da manhã na árvore que se agiganta à minha frente e acomodo os mundos que tenho dentro de mim.

Nesse meu mundo sempre tem trilha sonora, mas agora os acordes que deixo ao fundo funcionam mais como o ruído do vento e dos poucos carros que passam lá embaixo. No entanto, brinco de imaginar a projeção da sequência de eventos no enquadramento da tela de cinema e decido não só os sons que fariam de meus momentos cinematografáveis mas também o rumo dos acontecimentos que se desenham em minha mente.

É curiosa a maneira como a lembrança nos transforma em personagens de nós mesmos, mas também dá a chance de fazermos as vezes de diretores e rever papeis, posicionamentos e sensações. 'Desliga o som e traz a menina aqui'. Dou ordens e refaço a cena, congelando os outros personagens e suas caras e bocas tortas com gosto de passado. A luta na refação é lidar com tantos resquícios que sobram dentro de mim, escondidos em hábitos que grudaram fundo na pele e sobem para a boca com a agitação das borboletas no estômago. Decido por convidá-la a me acompanhar no hoje em diante e pensar junto com seu olhar o que fica e o que vai, acalmando a menina assustada, receosa, humilhada, mas sonhadora.

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

sou meu hóspede

Sou meu hóspede noturno

em doses mínimas

e uso a noite

para despojar-me

da modéstia

e outras vaidades


procuro ser tratado

sem os prejuízos

das boas-vindas

e com as cortesias

do silêncio


não coleciono padeceres

nem os sarcasmos

que deixam marca


sou tão-só

meu hóspede

e trago uma pomba

que não é sinal de paz

mas sim pomba


como hóspede

estritamente meu

no quadro-negro da noite

traço uma linha

branca



Mário Benedetti (1920-2009), poeta uruguaio, In: De La Vida ese Parentesis.