Tinha Bruno, o cachorro. Não há bar sem cachorro. Não um verdadeiro boteco. É preciso ter um cachorro babando na porta a espera das migalhas de pão eventualmente oferecidas para ser um autêntico boteco. E para ser de verdade mesmo, só se fosse escrito com u - buteco - que tudo certinho não é coisa de um que se preze. Nada tão certinho, com todas as letras no lugar, pode dar certo se o objetivo é ser um bar, o buteco.
E Solange me encontrava todas os finais de tarde lá. Moça de Manaus, cabelo alisado e pintado de dourado. Não era claro demais não porque é coisa que eu não gosto muito. Era quase avermelhado aquele cabelo todo certo jogado para os ombros. Era a única coisa certa permitida numa mesa de latão no bar sem placa com letras gordas em cima da porta.
Manicure do bairro, trabalhava de branco e sua mania de limpeza se empossava de seu corpo onde quer que estivesse. Chegou um dia a levantar e dar banho no banheiro porque não era possível passar um dia de merda e se aliviar nela também.
Mas era forte. Não queria nada comigo não. E não entendia que sorria para ela não com interesse, mas admiração. Não queria Solange como mulher, para mim. Queria ficar ali olhando tudo e achando um encaixe nas peças como um quebra-cabeça grande, vivo, colorido, de milhões de peças. Era o bar, o Beto, ela e o Bruno. A saia da Marluci rodando e eu, aquele mané da universidade, achando graça nas horas que o povo alivia a tensão. Eu achando graça no sorriso da mulher que trabalhava desde cedo no dia, na vida, fazendo o cabelo dourado brilhar na luz do poste que a rua emprestava para a calçada do bar mais buteco que eu tinha entrado até aquele dia, meu aniversário de 23 anos.
Estava sozinho havia algumas semanas. A universidade em greve e eu precisando estudar, acabei por ficar aqui, só eu, apartamento todo para mim, a solidão toda minha, nenhuma cerveja na geladeira deixada para mim numa semana de quase nenhum livro aberto, mas centenas de horas observando todas as curvas e falhas que o pincel fez e deu quando passou pelo teto do meu quarto.
Uma caminhada no final da tarde e a calçada molhada me deteve em frente a um cara baixo, bigode amarelado e um cigarro eternamente aceso no canto da boca. Nem eram os dentes que seguravam. Não dava para saber. E foi a fumaça do cigarro do Beto que me jogou para dentro desse cantinho cheio de graça, desgraça e cachaça. E ali passei a terminar meu dia, fosse ele bom ou ruim. E sempre dividindo um copo com a Solange, que morria de rir das minhas bobagens. Morria de rir das minhas amarguras e chorava com todas as dores, minhas ou não.
Aí eu acho que alguma autoridade tinha que vir tombar isso daqui. O buteco oficial do Brasil. Nem precisa ser tanto. Pode ser só patrimônio do bairro, nada da humanidade, porque é capaz da humanidade conhecer isso aqui e acabar estragando tudo, me levando de volta para a observação de mim em cada falha nas paredes do meu quarto.