terça-feira, 11 de setembro de 2012

Solidão como ponto de vista

Era bar do Beto. Não que tivesse placa com nome em cima da porta. Letras gordas, vermelhas, convidando para uma porção de calabresa acebolada. Não tinha. Nem placa com letras gordas, nem a cebola, que já brotava em cima da geladeira. Nada muito gordo. A não ser seu João do outro lado do balcão, a trabalhar para o tal de Beto. Talvez a dona Mariluci que vinha sempre com uma saia florida e uma camisa com chinelão para dançar o samba no meio da rua.

Tinha Bruno, o cachorro. Não há bar sem cachorro. Não um verdadeiro boteco. É preciso ter um cachorro babando na porta a espera das migalhas de pão eventualmente oferecidas para ser um autêntico boteco. E para ser de verdade mesmo, só se fosse escrito com u - buteco - que tudo certinho não é coisa de um que se preze. Nada tão certinho, com todas as letras no lugar, pode dar certo se o objetivo é ser um bar, o buteco.

E Solange me encontrava todas os finais de tarde lá. Moça de Manaus, cabelo alisado e pintado de dourado. Não era claro demais não porque é coisa que eu não gosto muito. Era quase avermelhado aquele cabelo todo certo jogado para os ombros. Era a única coisa certa permitida numa mesa de latão no bar sem placa com letras gordas em cima da porta.

Manicure do bairro, trabalhava de branco e sua mania de limpeza se empossava de seu corpo onde quer que estivesse. Chegou um dia a levantar e dar banho no banheiro porque não era possível passar um dia de merda e se aliviar nela também.

Mas era forte. Não queria nada comigo não. E não entendia que sorria para ela não com interesse, mas admiração. Não queria Solange como mulher, para mim. Queria ficar ali olhando tudo e achando um encaixe nas peças como um quebra-cabeça grande, vivo, colorido, de milhões de peças. Era o bar, o Beto, ela e o Bruno. A saia da Marluci rodando e eu, aquele mané da universidade, achando graça nas horas que o povo alivia a tensão. Eu achando graça no sorriso da mulher que trabalhava desde cedo no dia, na vida, fazendo o cabelo dourado brilhar na luz do poste que a rua emprestava para a calçada do bar mais buteco que eu tinha entrado até aquele dia, meu aniversário de 23 anos.

Estava sozinho havia algumas semanas. A universidade em greve e eu precisando estudar, acabei por ficar aqui, só eu, apartamento todo para mim, a solidão toda minha, nenhuma cerveja na geladeira deixada para mim numa semana de quase nenhum livro aberto, mas centenas de horas observando todas as curvas e falhas que o pincel fez e deu quando passou pelo teto do meu quarto.

Uma caminhada no final da tarde e a calçada molhada me deteve em frente a um cara baixo, bigode amarelado e um cigarro eternamente aceso no canto da boca. Nem eram os dentes que seguravam. Não dava para saber. E foi a fumaça do cigarro do Beto que me jogou para dentro desse cantinho cheio de graça, desgraça e cachaça. E ali passei a terminar meu dia, fosse ele bom ou ruim. E sempre dividindo um copo com a Solange, que morria de rir das minhas bobagens. Morria de rir das minhas amarguras e chorava com todas as dores, minhas ou não.

Aí eu acho que alguma autoridade tinha que vir tombar isso daqui. O buteco oficial do Brasil. Nem precisa ser tanto. Pode ser só patrimônio do bairro, nada da humanidade, porque é capaz da humanidade conhecer isso aqui e acabar estragando tudo, me levando de volta para a observação de mim em cada falha nas paredes do meu quarto.