segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

esquina

Uma esquina
e o bar que já serviu
copos de cerveja, plural,
hoje serve um, singular.

Mas é celebração
e não lamento.
À saúde da mulher
que hoje se sustenta.

E é a mim que recorro
no refresco da alma
e do corpo só
e inteiro.

sábado, 22 de dezembro de 2018

Cadeiras vazias

Nossa mesa estava vazia e nos meus ouvidos os fones pendurados
no som que trazia de volta o cheiro de março, o verão à noite.

Caminhar por essa calçada é misto de desejo e saudade
e a trilha é extensa entre sorrisos, engasgo e lágrimas.

Hoje, no entanto, as lágrimas são de graça e não de dor,
dor que arranquei com a força dos dedos desiludidos e acordados.

E continuo em verso lavando o resto que sobrou da miséria de um amor perdido.

às muitas vistas

Sonhei que tinha mandado uma música do Chico César para você.
E você chorou quando ouviu.
Eu via tudo,
como onipotente e onipresente em sonho.
Uma deusa do meu próprio destino.
Uma menina nas mãos decisivas dos caminhos trilhados por mim.

Era simples
e corajoso.
Era um resumo de mim
e de quando caminhou ligeiro (e fugidio) ao meu lado.
Era sonho,
mas era memória também.

E acordei para dedilhar no piano as notas adormecidas no peito.
Era eu, mais do que você. Mas você também estava lá.


domingo, 16 de dezembro de 2018

Expurgo

       Foram três palavras lidas e uma descarga elétrica despejada no topo da sua cabeça. Não sabia nem como e nem o porquê de ter parado ali, novamente com o risco, agora comprovado, de sofrer com a imagem de sua mentira. As três palavras não machucavam tanto quanto a dor da perda da propriedade delas. Não eram mais suas. Não eram mais.

      A luz em volta de si foi se apagando enquanto passava a mão direita no estômago dolorido, ardente. Suas unhas cavucavam e a ardência parecia aumentar. Sangue, carne e o dedos a perfurar a pele. Coçava de vazio, coçava de ausência. Recostou no travesseiro sua cabeça pesada e ainda eletrizada pelas três palavras desprovidas de seu corpo. Ou seu corpo desprovido delas.

     Sua mão já apalpava algo quente, úmido e palpitante no centro de sua barriga. Segurava-o fortemente, acariciava-o e retirava-o de dentro de si. A incisão que fizera foi o caminho para a salvação.

      Foi até o banheiro e com uma toalha limpou o sangue, lavou a barriga. Pegou gaze na gaveta, passou algodão com iodo e fechou com esparadrapo. O curativo superficial não era uma preocupação. Seu ventre se recompunha rápido. As células de carne e de pele se multiplicavam a cada passada de algodão. Seu corpo se acalmava e as três palavras não coçavam mais no centro de seu ventre. 

        Retomava posse, oferecendo-se para si.

       Trocou os lençóis da cama, arrastou os móveis e o ar chegava agora em seus cantos escondidos. Fez um café e sentou-se de frente para a vista do céu. Aquela dor não era mais sua. A dor, desapossada, destituída, desabrigada, fora jogada pela janela e sua redenção vinha de dentro daquela mulher.

     Voltava a ser senhora de si. Voltava a ser um corpo completo, uma mulher com outras tantas acomodadas em seu peito. Todas pela reconstrução do caminho labiríntico que levava até o seu coração.