quarta-feira, 15 de outubro de 2008

A Dor em Capítulos - I

Eu vi meu sobrinho na calçada oposta e brequei. Meu pé afundava-se no acelerador e eu ia estourar o muro se não tivesse encontrado os olhos de Pedro do outro lado da rua. Eu ia dar um fim na loucura dolorida que apertava meu peito há 20 anos. Iria deixar entre o muro e o poste toda a obsessão, a doença chamada Carlos.

'Entra aqui' gritei a ele. Gritei implorando ajuda. Meus olhos devem ter assustado o garoto. Olhos vermelhos, inchados de tristeza, de incerteza, de amargura. Gritei pela minha vida, que já não era minha, que já escorria pelas minhas mãos, já doía a culpa da minha recente intenção.

Minha morte seria talvez uma forma de limpar tanta mágoa, humilhação. Apagaria de dentro de mim, que não existiria mais. Eu não seria mais nada do que um corpo preso entre a lataria daquele carro velho, acabado, enferrujado.

Dei a volta no quarteirão e peguei a estrada para o sítio. Voltava correndo no dia azul, aberto para o abraço da minha irmã, para o meu quarto sozinho, vazio. O verde que beirava a estrada me levava para aquele dia no bar do centro, aquele dia que encontrei na boca daquele homem as palavras que esperei escutar e o olhar que esperei para me atirar.

Eu tinha acabado de fazer aniversário - 35 anos. Uma jovem, nem tanto, mulher solteira numa cidade pequena do interior. Uma mulher que já havia sido abandonada no altar, que já havia ouvido promessas para toda a vida e que agora bebia numa mesa de um bar, sozinha, comemorando a decepção de uma vida insatisfeita.

Tinha visto-o encostado no bar pedindo bebidas. Vagarosamente aproximava-se da minha mesa. 'Posso sentar com você?' 'Claro, por favor'. Retirei correndo minha pequena bolsa vermelha de cima da mesa derrubando meu copo de uísque. Desastre. 'Desculpa' 'Imagina, deixa eu te ajudar'. Enquanto nossas mãos secavam todo o meu desconserto eu suava e respirava forte, no ritmo da minha ansiedade.

Recusei suas mãos mas aceitei o presente de seus beijos. Um doce para equilibrar a acidez da idade 'avançada'. Fiquei sentada no chevette velho com perfume de rosas olhando para o vazio do estacionamento. Algumas imagens pareciam-me mais brilhantes, mais nítidas e, se me permitem a pieguice, mais coloridas.

2 comentários:

Paula Oliveira disse...

Muito bom!

Aguardo os próximos capítulos ;)

Bjomeliga!

Anônimo disse...

Oi Mari.

Como sempre, seus textos são sublimes!

Bjos e até +,
Lê :D